O pedido de reparação de danos, contido no artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal (CPP) tornou-se praxe em denúncias oferecidas contra os infratores da Lei n.º 8.137/90. Questão pouco difundida é que tal prática se afasta, verdadeiramente, da intenção originária do legislador quando da edição da Lei nº. 11.719/08, que passou a prever a possibilidade de fixação, na sentença condenatória, de um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração.
Reflexo do forte movimento que pretende inserir no bojo do processo penal a tutela dos interesses patrimoniais da vítima – para simplificar e acelerar a reparação civil dos danos vinculados ao delito – pretendia o legislador aproveitar a produção probatória do processo penal e a respectiva cognição judicial do crime – mesmo fato gerador da pretensão punitiva e da indenização civil – para, simultaneamente, implementar a reprimenda penal e a reparatória.
Para além da celeridade, a apreciação em conjunto dos pleitos com natureza diversas expunha, ainda, a experiência na militância forense, pois sabe-se que o Juiz Cível muitas vezes decide as questões patrimoniais lastreado tão somente em provas documentais, na frieza dos papéis. Por isso, afigurava-se razoável que o Juízo Criminal – obrigado a ter um contato mais próximo das provas do crime, sobretudo as orais, onde há interação direta com a vítima, as testemunhas e o réu – dispusesse de competência para conhecer a controvérsia de forma vertical para, então, fixar a quantia mínima reparatória.
Todo esse arcabouço significativo que precede a inserção do artigo 387, inciso IV, no CPP é ignorado, na maioria das denúncias ofertadas pelo Ministério Público (MP), que desconsidera por completo o espírito da Lei, e sequer busca saber se houve propositura de ação de execução fiscal (!).
Quando muito, o Parquet se utiliza do conteúdo meramente documental da demanda cível para reforço argumentativo de sua peça acusatória, mas despreza o pedido expresso de ressarcimento contido na demanda executória, desimportando-se com o nítido risco de recebimento em dobro do pretendido e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do Estado.
O pleito de ressarcimento em duplicidade não é a única questão processual espinhosa enfrentada no debate.
Uma vez fixado o quantum indenizatório ex officio pelo Juízo Criminal na sentença, como garantir ao Réu o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa? É preciso registrar, de saída, a manifesta nulidade da reparação que surge cabalisticamente no ato de condenação quando, pela primeira vez, se expõe um número aleatório, causando surpresa a defesa e ferindo de morte os referidos princípios, eis que não oportunizado ao Réu o direito de produzir provas essenciais a fixação do dano.
E nem se mencione as hipóteses onde se pretende postergar o debate sobre o quantum debeatur para a fase de liquidação, eis que impossível adentrar na analise das provas após o trânsito em julgado da sentença.
A legitimidade é outro grande entrave a ser verticalizado. Nas seções onde há Procuradoria estruturada, carece o MP de legitimidade para o pedido, devendo, de logo, ser considerada inepta a denúncia com expresso pedido de reparação.
Isto porque, não se pode esquecer que o fundamento que legitima a ação penal (Lei n.º 8.137/90) e autoriza a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN – artigos 12 e 13, da Lei Complementar n.º 73/1993) a promover o procedimento de Execução Fiscal é mesmo: a ordem tributária e econômica.
Lado outro, na hipótese de fixação ex officio, igualmente não goza o Ministério Público de legitimidade para debater sobre o assunto, pois, incontroversamente, cuida-se de matéria patrimonial, havendo proibição constitucional na atuação ministerial nos casos de interesses individuais disponíveis (art. 127 da CR).
Resta ao Juízo Criminal tão somente a alternativa de se intimar a vítima, titular da pretensão indenizatória, momento no qual esta poderia simplesmente consignar a sua re- núncia à pretensão civil, pois cuida-se de direito disponível. – tiraria isso aqui para ficar um texto mais específico de tributário
Por fim, não é ocioso lembrar que os Tribunais Superiores já se manifestaram sobre a hipótese[1]. A Fazenda Pública, na qualidade de vítima do crime contra a ordem tributária, tem possibilidade de recuperar os valores sonegados mediante o manejo de execução fiscal e a consequente inscrição em dívida ativa do débito consolidado, não sendo necessária a fixação de valor mínimo para reparação de danos ao ofendido, mencionada acima.
Assim sendo, mesmo reconhecendo o afamado argumento de independência entre instâncias, permitindo que as esferas penais e outras tenham autonomia para decidirem suas questões, também deve se reconhecer a importância do diálogo entre elas para a promoção da justiça, conforme nos assegura fortemente a doutrina[2].
Não reconhecer todas as questões ora ventiladas tem implicado em decisões, proferidas por todas as cortes do País, afastadas da hodierna dialeticidade entre as diversas esferas de poder, e, pior, protagonistas de uma teratologia inconcebível, ao se proferir conteúdo decisório capaz de ofender o princípio non bis in idem, violando a separação de competências constitucionais e enriquecimento sem causa, ao condenar por duas vezes um cidadão pelo mesmo fato delituoso.
Antonio Tide Tenório Albuquerque Madruga Godoy, advogado, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/SP – EDESP e em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra – Portugal, em convênio com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. Membro do IBCCRIM e da União dos Advogados Criminalistas – UNACRIM.
Fernanda Rodrigues de Lima – Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco no ano de 2013. Pós-graduada em contratos, pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro do IBCCRIM. Secretaria da Comissão de Compliance e combate à corrupção da OAB/PE (2019 -2021).
[1] RExt. com Agr nº 958.926 – RS, Rel. da Min. Rosa Weber, STF, 2016; RExt. com Agr nº 1.116.544 – RS, Rel. do Min. Dias Toffoli, 2018; HC n.º 411174 – SC, Rel. da Min. Maria Thereza Assis Moura, 2018.
[2] PRECEDENTES, coordenadores, Fredie Didier Jr… [et. al.] – Salvador: Juspodivm, 2016. Texto de LOPES FILHO, Juraci Mourão. O Novo Código de Processo Civil e a sistematização em rede dos precedentes judiciais. p. 172-173.