Portaria é ato normativo que consiste em um “documento de ato administrativo de qualquer autoridade pública, que contém instruções acerca da aplicação de leis ou regulamentos, recomendações de caráter geral, normas de execução de serviço, nomeações, demissões, punições, ou qualquer outra determinação da sua competência.”.
Assim, é de fácil conclusão que uma portaria, de forma estrita, tem como função auxiliar a correta aplicação de uma lei. Não tem como atribuição, entretanto, a inovação no ordenamento jurídico, estabelecendo novos direitos ou obrigações a quem se submete aos seus ditames.
Uma portaria também não possui como alçada a restrição de direitos já conferidos por meio legal, devendo apenas promover instruções, procedimentos, questões administrativas, burocráticas e meios efetivos para a aplicação e execução da norma regulamentada. Tal determinação possui observação obrigatória, visto que decorrente do princípio constitucional da legalidade – art. 5º, II, CRFB.
Notadamente no caso do presente artigo, a portaria PGFN nº 6757/2022 possui como objetivo regulamentar algumas determinações trazidas pela Lei nº 14.375/2022. Tal portaria disciplina os critérios para aferição do grau de recuperabilidade das dívidas, os parâmetros para aceitação da transação individual, a concessão de descontos relativos a créditos da Fazenda Pública e os procedimentos, os requisitos e as condições necessárias à realização da transação na cobrança da dívida ativa da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) cuja inscrição e administração incumbam à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Já a Lei nº 14.375/2022 altera a Lei nº 13.988/2020, que possui como nova redação de seu art. 11:
Art. 11. A transação poderá contemplar os seguintes benefícios:
I – a concessão de descontos nas multas, nos juros e nos encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade competente, nos termos do parágrafo único do art. 14 desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 14.375, de 2022)
II – o oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória; e
III – o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições.
IV – a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL, até o limite de 70% (setenta por cento) do saldo remanescente após a incidência dos descontos, se houver; (Incluído pela Lei nº 14.375, de 2022)
V – o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros. (Incluído pela Lei nº 14.375, de 2022)
§ 1º É permitida a utilização de mais de uma das alternativas previstas nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo para o equacionamento dos créditos inscritos em dívida ativa da União. (Redação dada pela Lei nº 14.375, de 2022)
(…)
Verifica-se que o inciso IV do art. 11 autoriza a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL, até o limite de 70% (setenta por cento) do saldo remanescente após a incidência dos descontos. No caput, o inciso IV é qualificado como benefício, benefício esse elencado em lei – necessário frisar.
Não poderia a Portaria PGFN nº 6757/2022 restringir os contornos da lei, porém, a mesma o fez no seguinte dispositivo:
Art. 8º As modalidades de transação previstas nesta Portaria poderão envolver, a exclusivo critério da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as seguintes concessões, observados os limites previstos na legislação de regência da transação:
I – oferecimento de descontos e a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) aos débitos considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional;
(…)
A utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), excetuando-se a figura do devedor contumaz (art. 5º, III, lei nº 13.988/2020), não possuía entrave para os demais tipos de devedores, o que fora limitado pelo art. 8º, I, da Portaria PGFN nº 6757/2022, que instituiu como requisito para utilização de créditos de prejuízo fiscal os débitos serem considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Conforme a portaria, consideram-se créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação aqueles elencados no art. 25, como por exemplo os inscritos em dívida ativa há mais de 15 (quinze) anos e sem anotação atual de garantia ou suspensão de exigibilidade, de titularidade de devedores falidos, em recuperação judicial ou extrajudicial ou com exigibilidade por decisão judicial há mais de 10 (anos).
Decerto que tal requisito reduziu drasticamente a quantidade de contribuintes que aproveitarão o benefício!
A portaria, assim, restringe o direito do contribuinte ao ferir o princípio da legalidade e da hierarquia das normas jurídicas, impondo restrição ao aproveitamento do benefício não prevista em lei. Ora, portaria consiste em norma de caráter secundário e complementar; retira sua validade e eficácia da estreita observância aos atos de natureza primária como a lei e a Constituição da República. Não é possível, assim, que inove no ordenamento jurídico restringindo direito já consagrado.
Assim, não é possível ao mero ato administrativo regulamentador restringir benefícios garantidos por intermédio de lei ao contribuinte. Infelizmente é necessário afirmar que é relativamente comum em portarias PGFN que se extrapolam questões delimitadas em lei, tendo como resultado criações de ônus e obrigações ou impedimentos de exercícios de direitos ao contribuinte.
Além disso, a própria Lei nº 13.988/2020, no art. 5º e no art. 11, §2º também aponta vedações às transações.
Ou seja, a própria lei aplicável já possui impedimentos suficientes para o aproveitamento dos benefícios pelos contribuintes, o que demonstra que as restrições foram observadas e utilizadas pelo legislador e as já pontuadas em lei foram consideradas suficientes para a aplicação dos institutos. Não há, assim, necessidade de estreitamento dos benefícios por via infralegal. Tal constatação apenas demonstra que a restrição de aproveitamento dos prejuízos fiscais e base de cálculo negativa por via infralegal institui violação ao direito adquirido dos contribuintes que preenchiam os requisitos instituídos quando da instituição da lei nº 14.375/2022.
O que se prevê em relação ao caso em análise é a possibilidade de judicialização devido à restrição apontada, consequência provável, em que contribuintes poderão recorrer ao judiciário para garantir seus direitos em relação ao uso de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL, mesmo que não possuam débitos considerados irrecuperáveis.