I – CONCEITO DE MÚTUO
O conceito de mútuo pode ser extraído do artigo 586 do código civil, delimitando que “o mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade”.
Sendo coisa fungível o bem que pode ser substituído por outro de mesma espécie, qualidade e quantidade, como por exemplo o dinheiro. O mutuário aquele que toma o empréstimo e o mutuante quem empresta o capital.
O contrato de mútuo pode ser gratuito (sem a cobrança de encargos, ou seja, sem o pagamento de juros) ou oneroso (com encargos, ou seja, com o pagamento de juros)
Não há, na legislação comercial, civil ou tributária qualquer obrigatoriedade de cobrança de encargos nos negócios de mútuo entre pessoas jurídicas que mantenham vínculos de controle, coligação ou interligação no Brasil.
Neste texto trataremos de mútuo doméstico, em dinheiro, gratuito, concedido entre pessoas jurídicas de um mesmo grupo econômico.
II – DO MÚTUO DOMÉSTICO ENTRE SOCIEDADES RELACIONADAS (INTRAGROUP LOANS)
No caso de duas pessoas jurídicas residentes no Brasil (mutuante e mutuário) e não havendo a cobrança de juros, não há a incidência dos seguintes tributos federais na operação:
(i) IRPJ;
(ii) CSLL;
(iii) PIS/COFINS;
Não há exigência de IRPJ e CSLL pois os valores recebidos a título de mútuo não são considerados como acréscimo patrimonial, pois ao mesmo tempo que há um acréscimo no ativo traduzido em uma disponibilidade de caixa há um acréscimo no passivo do contribuinte, traduzido como uma obrigação a pagar o empréstimo, desta forma não consiste em renda a ser tributada.
No tocante ao PIS e à COFINS, quando do empréstimo, na mesma linha do IRPJ e CSLL, houve uma transferência financeira da credora para a devedora, cujo lançamento contábil a ser efetuado por esta é de natureza qualitativa (sem acréscimo patrimonial), uma vez que concomitantemente há um aumento de ativo (bens e direitos) e passivo (obrigações). Portanto, não há a caracterização de “receita” auferida pela mutuária, no caso de valores recebidos como mútuo.
Também não haverá a incidência do ISSQN pois tal operação não caracteriza prestação de serviço tributável pelo imposto municipal no caso de pessoa jurídica que não presta serviços financeiros.
Porém, como a operação ocorre entre pessoas jurídicas e o objeto da operação (mútuo) é dinheiro, há uma operação de crédito, sendo fato gerador do IOF – Imposto Sobre Operações Financeiras – IOF incidente em operações de crédito, com base na alínea “c” do inciso I do artigo 2° e do parágrafo 3°, inciso III do artigo 3° ambos os dispositivos do Decreto de n° 6.306/2007 (regulamento do IOF), que atesta a incidência do IOF nas operações de crédito realizadas por pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física nas operações de mútuo de recursos financeiros, sendo o seu fato gerador, especificamente, a “entrega do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição do interessado”.
Desta forma, toda e qualquer operação de crédito entre pessoas jurídicas, seja por meio de pessoa jurídica prestadora de serviços financeiros ou não, incidirá IOF, Só não incidindo nas hipóteses do artigo 8° (hipóteses de alíquota 0) e nos casos elencados no artigo 9° (hipóteses de isenção).
De forma complementar, o artigo 10° da Instrução Normativa n° 1.969/2020, que revogou a antiga IN RFB N° 907/2009, que dispõe sobre o IOF crédito, câmbio, seguro e relativas a títulos ou valores mobiliários, informa o seguinte, de forma resumida:
“Art. 10. No caso das operações de crédito concedido por pessoas jurídicas não financeiras de que trata o art. 13 da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, o IOF incide somente sobre as operações de mútuo que têm por objeto recursos em dinheiro, disponibilizados sob qualquer forma.
§ 1º Para fins do disposto no caput, o IOF tem como:
I – contribuinte, o mutuário, pessoa física ou jurídica;
II – fato gerador, a entrega do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação ou sua colocação à disposição do mutuário;
III – base de cálculo, o valor entregue ou colocado à disposição do mutuário, observado o disposto no § 2º; e
IV – responsável por sua cobrança e recolhimento, a pessoa jurídica mutuante.
§ 2º No caso de operações de crédito realizadas por meio de conta corrente, a base de cálculo será:
I – o somatório dos saldos devedores diários, apurado no último dia de cada mês, se não definido o valor de principal; e
II – o valor de cada principal entregue ou colocado à disposição do mutuário, se definido esse valor.
§ 3º O IOF incidirá às alíquotas previstas no § 2º do art. 9º e deverá ser recolhido ao Tesouro Nacional até o 3º (terceiro) dia útil subsequente ao decêndio da cobrança, sob os seguintes códigos de receita:
I – 1150, se o mutuário for pessoa jurídica; e
II – 7893, se o mutuário for pessoa física.”
A fim de fornecer provas documentais no contexto de qualquer fiscalização, em relação à possibilidade do contrato de mútuo gratuito, é altamente recomendável formalizar o contrato de empréstimo entre as duas partes por escrito, sendo recomendável o registro no cartório. Ressalta-se que, nesse sentido, existem decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) eliminando o argumento de omissão de receita, o que acarretaria na cobrança de IRPJ, CSLL, PIS / COFINS sobre tais valores (sem prejuízo de multa e juros), vejamos:
Acórdão nº 103-21.157
órgão 1º Conselho de Contribuintes – 3a. Câmara Decisão 1º Conselho de Contribuintes / 3a. Câmara / acórdão 103-21.157 em 26.02.2003
OMISSÃO DE RECEITAS – CONTRATO DE “MÚTUO” – PROVA. CANCELAMENTO DA EXIGÊNCIA – Tendo sido juntadas aos autos provas das operações que deram origem aos lançamentos contábeis, cancelam-se as exigências fundamentadas na omissão de receitas.
PROCESSOS REFLEXOS – IRF – COFINS – PIS – CSLL – Respeitando-se a materialidade do respectivo fato gerador, a decisão prolatada no processo principal será aplicada aos processos tidos como decorrentes, face a íntima relação de causa e efeito. (g.n.)
Acórdão nº 103-21.578
órgão 1º Conselho de Contribuintes – 3a. Câmara Decisão 1º Conselho de Contribuintes / 3a. Câmara / acórdão 103-21.578 em 14/04/2004
SUPRIMENTO DE NUMERÁRIO – FALTA DE COMPROVAÇÃO – As operações de mútuo devem estar respaldadas em documentação hábil e idônea, que comprovem os lançamentos contábeis no grupo Exigível a Longo Prazo, caso contrário ensejam o lançamento de ofício por omissão de receitas. (g.n.)
Ademais, no tocante a possibilidade jurídica da utilização de contrato de mútuo sem a cobrança de juros, deve-se esclarecer alguns pontos adicionais, pelo fato de que o tema ainda encontra resistência por parte de alguns.
De início, importante informar que a vedação da não cobrança de juros em mútuos não advém de norma expressa, tributária ou civil, que proíba a prática ou que exija juros mínimos.
Na realidade, o entendimento de que se deve cobrar uma taxa de juros mínima, principalmente entre pessoas jurídicas relacionadas, vem, por exemplo, do efeito causado pela indedutibilidade dos juros de um contrato anteriormente celebrado entre uma das pessoas jurídicas relacionadas (pessoa jurídica 1) e um terceiro (onde a pessoa jurídica que emprestou o dinheiro inicialmente atua, nessa relação jurídica, como a tomadora do capital perante o terceiro, que nessa relação é o credor) pelo fato de que a pessoa jurídica tomadora do capital (pessoa jurídica 1) repassar a totalidade ou parte dos valores obtidos junto ao terceiro para a outra pessoa jurídica relacionada (pessoa jurídica 2), não cobrando juros nesse segundo empréstimo.
Desta forma, mediante esta prática, caso fosse possível a dedutibilidade dos juros cobrados na primeira operação (entre a pessoa jurídica 1 e o terceiro), como não houve juros na segunda operação (entre a pessoa jurídica 1 e a pessoa jurídica 2, ambas integrantes do mesmo grupo econômico), a pessoa jurídica 1 teria despesas dedutíveis, de um lado, e ausência de renda tributável, de outro, resultando numa possibilidade de planejamento tributário altamente manipulável entre sociedades de um mesmo grupo econômico para redução de IRPJ e CSLL.
Precisamente por esse motivo, a jurisprudência administrativa é majoritária quanto a esse entendimento. Observe-se:
Acórdão nº 1402-00.562
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF – 1a. Seção – 2a. Turma da 4a. Câmara CARF 1a. Seção / 2a. Turma da 4a. Câmara / em 26/05/2011
IRPJ AÇÃO FISCAL
ASSUNTO: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica IRPJ EMENTA
Ano-calendário: 1997 1998 IRPJ. GLOSA. ENCARGOS FINANCEIROS DE EMPRÉSTIMOS REPASSADOS A CONTROLADAS. Na determinação da base de calculo do IRPJ e CSLL, somente são dedutíveis os encargos financeiros de empréstimos indispensáveis à manutenção da fonte produtora.
Considera se liberalidade o repasse, a terceiros, de valores sem a cobrança de encargos ou em percentuais inferiores.
Recurso Voluntário Negado.
Publicado no DOU em: 11.08.2011
Acórdão nº CSRF/01-05.423
Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF – Primeira Turma Decisão Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF / Primeira Turma / em 21.03.2006
IRPJ E OUTROS – Anos 1997 a 2001
DESPESAS FINANCEIRAS – JUROS BANCÁRIOS – GLOSA DO EXCEDENTE EM RELAÇÃO À TAXA DE REMUNERAÇÃO DE MÚTUO ATIVO – REPASSE DO EMPRÉSTIMO – CARACTERIZAÇÃO – É admissível a glosa do excedente da taxa de empréstimo contraído com instituição financeira em relação à taxa de remuneração de mútuo com terceiros quando fica devidamente comprovado nos autos que há diferença entre o valor da captação e o repasse dos recursos, tendo como consequência a desnecessidade da despesa.
Recurso especial provido.
Publicado no DOU em: 16.07.2007
Convém ressaltar que, o simples fato de um mútuo ser realizado entre partes relacionadas (i.e., sociedades do mesmo grupo econômico ou controle societário) não constitui condição suficiente para exigir a cobrança de juros em tais mútuos, conforme já decidido pelo CARF:
Acórdão nº 105-16.363
1º Conselho de Contribuintes – 5a. CâmaraDecisão1º Conselho de Contribuintes / 5a. Câmara / em 28.03.2007
IRPJ e OUTRO – EXS.: 1999 a 2002
IRPJ – GLOSA DE DESPESAS FINANCEIRAS – NECESSIDADE COMPROVADA – O simples fato de o contribuinte ser credor de empresa ligada, e de este crédito não lhe render juros, não retira de juros regularmente pagos a instituição financeira, por conta de contrato de mútuo, a condição de despesa necessária, mormente quando provado que o crédito concedido à empresa ligada, formalizado através de instrumento particular de confissão de dívida, foi uma decorrência de acordo judicial celebrado com credor de ambas.
ACRÉSCIMOS MORATÓRIOS – DEDUTIBILIDADE – São dedutíveis na apuração do lucro real do exercício em que foram incorridos, independentemente de pagamento, os acréscimos moratórios sobre tributos reconhecidos como devidos (art. 344, caput e § 5º).
Recurso provido.
Publicado no DOU em: 10.04.2008) (g.n.)
Portanto, a proibição de celebração de contrato de mútuo sem a cobrança de juros, não vem da existência de dispositivo específico expresso, mas sim por causa da indedutibilidade dos juros que não foram repassados em contratos de mútuo posteriores.
Diante disto, é plausível afirmar que não há qualquer proibição à utilização de contrato de mútuo doméstico sem a cobrança de juros, bem como não há qualquer dispositivo legal que exija a cobrança de juros nos contratos de mútuo celebrados por empresas de um mesmo grupo econômico.
De verdade, na hipótese de repasse de recursos, a empresa poderá optar por não cobrar juros no mútuo repassado, a consequência será, portanto, a indedutibilidade dos juros pagos pela pessoa jurídica 1 em relação ao mútuo com terceiro.
Por fim, importante informar que, para não existir qualquer tipo de remuneração nos contratos de mútuos aqui discutidos, importante que a ausência de cobrança da taxa de juros esteja prevista em contrato.
Pois, caso não haja previsão, o Fisco poderá exigir e tributar os juros com base na taxa SELIC, ao aplicar o art. 406 em conjunto com o art. 591 do Código Civil, pois informa que no caso da não especificação de taxa de juros de mora em contratos, a taxa utilizada será aquela do Tesouro Nacional.
Roberto de Acioli Roma Filho
OAB/PE 54.522