- Introdução
A Coordenação-Geral de Tributação (COSIT), Órgão da Receita Federal do Brasil, editou a Solução de Consulta nº 202 – Cosit, publicada no Diário Oficial da União no dia 14 de dezembro, que repercute no tema já bastante discutido da incidência de PIS e COFINS sobre as mercadorias dadas em bonificação, discussão essa de grande relevo sobretudo para os varejistas.
Com efeito, na prática negocial é comum que fornecedores concedam mercadorias dadas em bonificação aos seus clientes, para que estes possam negociar melhores condições de ofertas e adquirir vantagens competitivas em relação aos seus concorrentes.
A grande questão que surge quando se fala sobre mercadorias dadas em bonificação é sobre a exclusão das bases de cálculo do PIS e da COFINS, desde que caracterizada a hipótese de desconto concedido de maneira incondicional, na linha do que diremos mais à frente.
De partida, uma questão de supina importância sobre o tema vertente é a própria diferença que existe entre o conceito contábil de receita (item 4.68 do CPC-00) e o conceito jurídico de receita (art. 195, I, “b”, da CRFB/88 interpretado pelo STF), para fins de se saber se as bonificações representam, de fato, receita da pessoa jurídica adquirente.
Afinal, seria possível qualificar as bonificações como receita?
Pensamos que à luz do conceito contábil de receita, presente no CPC-00 (estrutura conceitual básica da contabilidade), a questão é de menor dificuldade. Nesse sentido, como receitas, de acordo com o CPC-00, “são aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido”, não há grandes dificuldades em enquadrar as bonificações nessa categoria, já que elas resultam num aumento do ativo (estoque) sem a contrapartida de elação do passivo, influenciando positivamente no patrimônio líquido da empresa.
Já sobre o conceito jurídico de receita, o STF já afirmou que “V – O conceito de receita, acolhido pelo art. 195, I, “b”, da Constituição Federal, não se confunde com o conceito contábil […] sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”. (STF, RE 606.107/RS, Tribunal Pleno, Relatora Min. ROSA WEBER, DJe 25-11-2013).
Além disso, “a jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços” (STF, RE 390.840/MG, Tribunal Pleno, Relator Min. Marco Aurélio, julgado em 09/11/2005, DJ 15-08-2006).
Portanto, do contrário do que sucede com o conceito contábil de receita, no conceito jurídico, a redução de um passivo sem a correspondente redução de um ativo não induz receita auferida pela pessoa jurídica.
Nesse sentido, uma questão que exsurge relevante é sobre saber se as bonificações são redutores de custo (nos termos do item 11 do CPC 16); ou, de fato, receita.
Entendemos, sobre o ponto, que descontos e bonificações são redutores do custo de aquisição, uma vez que o próprio CPC 16 orienta que “descontos comerciais, abatimentos e outros itens semelhantes devem ser deduzidos na determinação do custo de aquisição”.
Em verdade, tratam-se, as bonificações, de um redutor do custo de aquisição decorrente de um desconto incondicional recebido.
Pois bem. É preciso diferenciar as hipóteses em que as mercadorias recebidas em bonificação devem ser excluídas da base de cálculo do PIS e da COFINS, como adiante será melhor explicado.
Com efeito, quanto ao conceito jurídico de receita, a questão, como visto, ganha contornos mais complexos, uma vez que o conceito é produto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O fato é que, após o advento da Lei nº 12.973/14, que alterou o Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, houve o alargamento do conceito de Receita bruta, que não raro cria, esse alargamento, inúmeras situações problemáticas em relação à incidência tributária dos tributos que incidem sobre o faturamento. Entre eles, o PIS e a COFINS.
Contudo, as próprias Leis desses tributos preveem a exclusão da base de cálculo (receita bruta) dos chamados descontos incondicionados, entendidos como aqueles descontos que não estão condicionados a um evento futuro. E nessa condição, o desconto incondicionado não implica aumento do patrimônio líquido, não se classificando como receita, mas sim como redutor de custo de aquisição.
Como cediço, a teor do artigo 1º, §3º, V, “a”, da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03, não integram a base de cálculo do PIS e da COFINS as receitas referentes aos descontos incondicionais concedidos, como sucede com as bonificações, desde que respeitada a incondicionalidade do desconto.
- A solução de consulta COSIT nº 202, de 14 de dezembro de 2021
Sobre as bonificações e a incidência ou não de PIS e de COFINS sobre essas mercadorias, deve-se atentar para a recente Solução de consulta COSIT nº 202, de 14 de dezembro de 2021, objeto do presente artigo.
Nessa Solução de Consulta, a Receita Federal dispôs que “bonificações em mercadorias entregues gratuitamente, a título de mera liberalidade, sem vinculação a operação de venda, configuram descontos condicionais, são consideradas receitas de doação para a pessoa jurídica recebedora dos produtos (donatária), incidindo a COFINS apurada pela sistemática não cumulativa sobre o valor de mercado desses bens”.
Ou seja, o que diz a Receita Federal nessa Solução de Consulta, é que, estando as bonificações apartadas da nota fiscal de venda dos bens, o desconto é necessariamente condicionado, não podendo ser excluído das bases das contribuições.
Demais disso, para fins de determinação da alíquota de PIS e de COFINS incidentes sobre a receita auferida na forma de bonificação em mercadorias não constantes de nota fiscal de venda, consoante a norma complementar ora estudada, deve-se determinar a natureza da receita, se financeira ou comercial, a qual depende da caracterização do negócio jurídico firmado entre as partes, nos termos das condições contratuais pactuadas.
Portanto, é preciso analisar o negócio jurídico que instrumentaliza a operação, para que se entenda se a receita é financeira ou comercial.
Sobre esse ponto, deve-se destacar que o contribuinte deve, de fato, tributar as mercadorias bonificadas como receitas financeiras nos casos em que houver essa caracterização, sobretudo porque, após a edição do Decreto nº 8.426/15, as alíquotas de PIS e da COFINS sobre esse tipo de receita foram restabelecidas para 0,65% e 4%, respectivamente (art. 1º).
Portanto, se a receita auferida for do tipo financeira, estará sujeita à incidência de PIS e de COFINS com as alíquotas previstas no Decreto nº 8.426/15; caso configure receita comercial, sujeitar-se-á às alíquotas aplicáveis no âmbito do regime não cumulativo (1,65% e 7,6%).
Na prática, a Receita Federal está entendendo que as bonificações devem ser oferecidas à tributação em dois momentos: no primeiro momento, na entrada da mercadoria bonificada, como receita financeira ou desconto comercial; no segundo momento, pela receita da venda da mesma mercadoria.
Nesse sentido, quanto ao primeiro momento (entrada bonificada) é importante analisar o contrato entre o contribuinte e o fornecedor para analisar a natureza da receita (se financeira ou comercial). A depender da classificação, como dito anteriormente, as alíquotas incidentes na aquisição serão diferentes, já que para as receitas financeiras as alíquotas são de 0,65% e 4% e para as receitas comerciais são de 1,65% e 7,6%, como consta da Solução de consulta examinada.
E ainda sobre a entrada das mercadorias bonificadas, é preciso que se atente para um ponto relevante: se constam da mesma Nota fiscal de venda ou se foram registradas em notas separadas.
No primeiro caso, a Receita Federal entende que se trata de um desconto incondicional; já no segundo caso, a Receita Federal entende que há uma doação, devendo ser a bonificação ser oferecida à tributação.
Portanto, no caso de as mercadorias constarem da mesma nota fiscal, a Receita Federal entende que há um desconto incondicionado, estando a operação isenta (artigo 1º, §3º, V, “a”, da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03), inclusive para fins de Imposto de Renda, nos termos do art. 220 do RIR (Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018).
Logo, o contribuinte deve procurar registrar as bonificações na mesma Nota fiscal de compra, ou seja, vinculando à operação de compra, sob pena de ter que oferecer as bonificações à tributação como Receitas financeiras, registrando a entrada no Registro F100 do Bloco F da EFD-contribuições.
Nesse sentido, essa questão ganhou maior relevo a partir do Decreto nº 8.426/15, que como visto, restabeleceu as alíquotas do PIS e da COFINS sobre receitas financeiras.
No segundo caso, sendo registrada a entrada em notas separadas, a Receita Federal entendeu, ainda na Solução de consulta em exame, que não há vinculação com a operação de venda, ocorrendo uma doação, que pode ser entendida como “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra” (art. 538 do Código Civil), fazendo incidir as contribuições sobre o valor de mercado dos bens, nos termos da Solução de consulta COSIT nº 291, DE 2017.
Nesse sentido, a Receita Federal consignou que “as bonificações recebidas na forma de mercadorias em documento fiscal próprio, ou seja, adquiridas sem vinculação a uma operação de venda não se caracterizam como descontos incondicionais, mas enquadram-se no conceito de doação, nos termos do art. 538 da Lei nº 10.406, de 2002 – Código Civil –, e configuram receitas auferidas pela pessoa jurídica adquirente”, devendo compor a base de cálculo das contribuições.
Assim, entendeu-se que as mercadorias recebidas em documentos fiscais separados configuram descontos condicionais, representando receita para a adquirente pelo aumento da conta de estoque sem a correspondente elevação do passivo, existindo um benefício que influi no resultado.
Nesse trilhar, a Cosit fundamenta a sua conclusão de não caracterização como desconto incondicionado a partir do que prescreve a Instrução Normativa SRF nº 51, de 1978, que conceitua os descontos incondicionais como sendo “parcelas redutoras do preço de vendas, quando constarem da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos”.
Contudo, é preciso que se chame atenção para o fato de que não há fundamento legal para essa condição de que as bonificações sejam reconhecidas como descontos incondicionais apenas se constarem da mesma nota fiscal de venda dos bens.
Portanto, são basicamente duas as condições para se reconhecer a incondicionalidade do desconto: a primeira, que conste da nota fiscal de venda; e a segunda, que não dependam, os descontos, de evento posterior à emissão desse documento.
E assim, a Receite Federal entende que “a posterior venda das mercadorias recebidas em bonificação gera receita para a pessoa jurídica, ocorrendo novo fato gerador das mencionadas contribuições, nos termos do art. 1º das Leis nº 10.637, de 2002, e nº 10.833, de 2003”.
Portanto, aduz, a Receita Federal, que os ativos recebidos em doação, que devem ser avaliados pelo valor de mercado, configuram-se como receitas auferidas pela pessoa jurídica e devem compor a base de cálculo das contribuições em apreço, por força dos arts. 1º da Lei nº 10.637, de 2002, e da Lei nº 10.833, de 2003”.
E não se tratando de descontos incondicionais, revela-se inaplicável a exclusão da base de cálculo das contribuições (já que as mercadorias bonificadas não constaram da nota fiscal de venda).
Contudo, a interpretação da Receita Federal deve render uma série de questionamentos no Poder Judiciário, uma vez que não é só o fato de não constar na mesma Nota Fiscal que descaracteriza a natureza incondicional do desconto, sendo forçada a tentativa de enquadrar as mercadorias dadas em bonificação como doação, interpretação que se baseia numa Instrução normativa que data de 1978 (Instrução Normativa SRF nº 51, de 1978).
Demais disso, o próprio Código Civil, no artigo 538, conceitua a doação como sendo “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.
Assim, vê-se que um elemento essencial da doação é a transferência de bens ou vantagens por uma liberalidade. Contudo, essa lógica não é aplicável aos negócios praticados pelos varejistas, uma vez que não há mera liberalidade (como se doação fosse), mas sim um negócio jurídico subjacente.
Portanto, equivocada, no nosso sentir, a pretensa caracterização dessa operação como doação.
Endossando a tese contrária, vejamos um trecho da Solução de consulta COSIT nº 202, de 14 de dezembro de 2021:
10.1 as bonificações recebidas na forma de mercadorias em documento fiscal próprio, ou seja, adquiridas sem vinculação a uma operação de venda não se caracterizam como descontos incondicionais, mas enquadram-se no conceito de doação, nos termos do art. 538 da Lei nº 10.406, de 2002 – Código Civil –, e configuram receitas auferidas pela pessoa jurídica adquirente;
10.2 essas receitas devem compor a base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, nos termos do art. 1º das Leis nº 10.637, de 2002, e nº 10.833, de 2003;
10.3 a posterior venda das mercadorias recebidas em bonificação gera receita para a pessoa jurídica, ocorrendo novo fato gerador das mencionadas contribuições, nos termos do art. 1º das Leis nº 10.637, de 2002, e nº 10.833, de 2003.
Contudo, é possível antever a litigiosidade que deverá surgir de tais previsões.
E não é pelo simples fato de não constarem, as mercadorias bonificadas, na mesma Nota fiscal da operação de venda, que se entende configurada uma doação.
Nesse sentido, é possível discutir a questão na seara administrativa ou mesmo judicialmente, uma vez que o pretenso enquadramento da operação de aquisição de bonificações como doação, somente por não constar do mesmo documento fiscal, deve ser rechaçada, uma vez que não se trata de mera liberalidade, mas de operação vinculada à venda, sem a qual não existiria.
Nesse sentido, o CARF possui decisões reconhecendo a necessidade de as mercadorias dadas em bonificação constarem na mesma nota fiscal de venda dos bens (Acórdãos n. 3402-007.376 e 3402-007.383) e decisões relativizando esse requisito para a exclusão das bases de cálculo do PIS e da COFINS (Acórdãos n. 1102001.260 e 3401-009.425), desde que comprovado, por outros meios, o cumprimento dos requisitos legais.
Com efeito, as Leis de regência do PIS e da COFINS não cumulativos excluem das bases de cálculo dessas exações os descontos incondicionais; ou seja, aqueles descontos que não estão sujeitos a um evento futuro, nos termos da Instrução Normativa nº 51, de 3 de novembro de 1978.
Contudo, a Instrução Normativa traz uma exigência sem fundamento legal, qual seja, a de que as mercadorias dadas em bonificação constem da mesma nota fiscal de venda dos bens, pelo que deve ser revisto, segundo o nosso entender, esse posicionamento da Receita Federal.
- Os créditos decorrentes da não cumulatividade e as bonificações
Já diante do que prescreve o artigo 3º, §2º, II, da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03, não dará direito a crédito o valor da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição.
Com efeito, e como já visto, no caso do recebimento da bonificação na forma de mercadorias em documento fiscal próprio, ou seja, adquiridas sem vinculação a uma operação de venda, a respectiva aquisição não gerou pagamento das contribuições pelo fornecedor das bonificações, não caracterizando, segundo o entendimento da Receita Federal, uma operação de compra e venda, mas de doação.
Nesse sentido, entende a Receita Federal, na Solução de consulta em questão, que na hipótese de bonificações recebidas em nota fiscal diversa da operação de venda, não há revenda de bens para que surja o direito ao desconto de créditos, tal como determina o inciso I do art. 3º das Leis nº 10.637, de 2002, e nº 10.833, de 2003, mas uma venda de mercadorias adquiridas por doação, o que afastaria o direito à tomada dos créditos.
Já na hipótese de recebimento das bonificações na forma de mercadorias no mesmo documento fiscal, vinculadas à operação de venda, que sejam caracterizadas como descontos incondicionais, ocorre a exclusão da base de cálculo das contribuições desses valores, por força do disposto no art. 1º, §3º, V, “a”, da Lei nº 10.637, de 2002 e da Lei nº 10.833, de 2003.
Portanto, segundo entende a RFB, também não haveria direito aos créditos a serem descontados do cálculo das referidas contribuições, haja vista não ter ocorrido o pagamento das contribuições em etapa anterior por outra pessoa jurídica, conforme determina o art. 3º, §2º, II, da Lei nº 10.637, de 2002 e da Lei nº 10.833, de 2003.
Nesse sentido, o entendimento da Receita Federal, exarado na Solução de consulta em questão, passa, em última análise, pelo próprio princípio da não cumulatividade, de envergadura constitucional.