A teoria da desconstituição da personalidade jurídica é oriunda de decisões prolatadas pelos tribunais alemães, ingleses, franceses e norte-americanos, que foram desenvolvidas e tratadas de modo científico pelo alemão Rolf Serick.
Salomão Filho (2006, p.229) assevera que, no Brasil, faz-se sentir fortemente a impostação funcional-unitária da doutrina, presente na jurisprudência brasileira, que atribui à pessoa jurídica uma visão paradigmática, reafirmando a separação patrimonial e a sua desconsideração somente sendo aceita consoante previsão legal expressa ou de comportamento considerado fraudulentos.
Nessa linha, já há o artigo 50 do Códex Civil, prevendo os casos para a desconsideração da personalidade jurídica, que assim estipula: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Recentemente, em se tratando de ordem processual, o Código de Processo Civil, advindo por meio da Lei 13.105, de 2015, também abordou o assunto ao criar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, regulamentando as condições para que terceiros alheios à obrigação sejam responsabilizados mediante a citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
Difere, sobremaneira, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica do redirecionamento da execução fiscal, pois no primeiro é oportunizado ao terceiro a premissa da sua defesa que o impeça de tornar-se responsável pela obrigação, enquanto que no redirecionamento não, a responsabilização é sumária, cabendo-lhe tão somente os embargos e/ou a exceção e pré-executividade, conforme for o caso, visto que a execução fiscal não se trata de apurar responsabilidades, mas do meio de realizar créditos líquidos, certos e exigíveis, onde o seu fundamento é o título executivo, precedido da Certidão de Dívida Ativa e do responsável pela dívida, inscrito nela.
A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.804.913, consolidou o entendimento de que é possível a instauração do incidente de desoncisideração da personalidade jurídica para fazer o redirecionamento fiscal, desde que não identificada na Certidão de Dívida Ativa (CDA) ou que não possua a responsabilidade tributária que esteja disposta nos artigos 134 e 135 do Código tributário Nacional.
O Recurso Especial mencionado julgava o caso de empresa que participava de mesmo grupo econômicoda sociedade empresária originalmente executada, sendo permitida que, primeiro, fosse instaurando o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, estabelecido pelos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, de modo que a empresa pudesse apresentar defesa prévia antes de se tornar exequida na ação executiva.
Em que pese a possibilidade de subsidiariedade do CPC à Lei de Execuções Fiscais, embora sem a previsão da existência da desconsideração da personalidade jurídica, há a complementaridade entre as normas mencionadas.
Contudo, não é assim que tem decidido a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, asseverando que o CPC não incluiu o sistema jurídico da execução fiscal e portanto, não é aplicável o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, trazendo ainda mais insegurança jurídica para a celebração dos negócios, principalmente ao perceber o momento atual de fusões e aquisições como meio de sobrevivência dos grupos econômicos e saltos em escala de empresas menores.
Concluiu a relatora da 1ª Turma da Colenda Corte mencionada alhures, Ministra Ministra Regina Helena Costa, que, excepcionalmente, a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, em sede de execução fiscal, para a cobrança de crédito tributário, revela-se cabível diante da: (i) relação de complementariedade entre a LEF e o CPC/2015, e não de especialidade excludente.
Há elementos nucleares que hão de sustentar o incidente da desconsideração da personalidade jurídica diante da lei de execuções fiscais, que são exatamente: o contraditório, e o interesse público envolvido.
Diante das atividades estatais realizadas, é incontestável o interesse público na questão da instauração do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, visto que há na Fazenda Pública a pretensão arrecadatória pelas receitas advindas dos tributos, in casu, auferidas por meio das execuções fiscais e a sua busca incessante pela satisfação do crédito tributário constituído.
Ainda assim, a supremacia do interesse público vista em aumentar a arrecadação tributária, chamada por Barroso (2014, p.94-95) de interesse público secundário, no sentido de prover exatamente o interesse público primário, também definido pelo festejado autor, onde insere-se a atividade fim estatal, através do Poder Judiciário, cujo interesse secundário não pode superar as garantias constitucionais ao direito ao contraditório.
A instauração do incidente, quer seja em processo de conhecimento, quer seja em ação de execução, é importante para garantir o contraditório e merece relevância, como lembrado por Machado Júnior (2017, p. 179), já que em casos de execução fiscal, a única maneira de defesa dar-se-ia por embargos à execução, que prescinde de garantia do juízo, onerando a parte embargante.
Flávio Augusto Nogueira Menezes
Advogado OAB-CE 37.326
Outubro, 2021
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2021
__________. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 25 out. 1966. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 28 out. 2021.
__________. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 28 out. 2021.
__________. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 24 set. 1980. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 28 out. 2021.
__________. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 28 out. 2021.
__________. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.201.993. Diário Oficial da União. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/>. Acesso em: 28 out. 2021.
MIRANDA, Cláudio Luiz de. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicabilidade em execuções fiscais. In: BUENO, Cassio Scarpinella; RODRIGUES, Marco Antonio (Org.). Processo tributário. Salvador: Juspodivm, 2017. p.143 – 168 (Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 16).
SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2006.