Com o lançamento fiscal e apresentação da defesa por parte do contribuinte, instaura-se o processo administrativo fiscal, garantido pela Constituição Federal. Ao fim do PAF, a administração fazendária, por força de lei, remete os autos ao MP para fins de representação penal por eventual crime de sonegação fiscal, tipificado pelas condutas prevista na lei nº 4.729/65. Em seguida, o Ministério Público oferece a denúncia instaurando a fase judicial criminal.
Em que pese tal procedimento, o Estado é detentor da prerrogativa e atua com a estrita legalidade aferindo o cometimento do crime de sonegação fiscal. Todavia, em se tratando de crimes de sonegação fiscal, há particularidades que ensejam a necessidade dos deslinde da matéria em determinado juízo para fins de continuidade da persecução penal.
Conforme redação do art. 93 do CPP, esclarece sobre a possibilidade suspender processo criminal quando a lide penal depender de julgamento na esfera cível:
Art. 93. Se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente.
Em matéria relacionada à sonegação fiscal, é imperiosa a aplicação desse instituto, tendo em vista que determinados temas tributários estão pendentes de julgamento no STF com repercussão geral. Nessa linha, a jurisprudência majoritária perfilhou o entendimento pela interrupção da persecução penal nos casos de suspensão da exigibilidade do crédito tributário:
“a orientação desta Corte Superior disciplina que o simples ajuizamento de ação anulatória na esfera cível não configura óbice à persecução penal. Contudo, a procedência da ação anulatória, ou mesmo o deferimento de tutela provisória com suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo 151, V, do CTN, prejudica o exame da materialidade do
delito tributário” (STJ – RHC 113.294/MG, 5ª T., ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 13/8/2019, p. DJe 30/8/2019).
É imprescindível que o juízo cível suspenda a exigibilidade do crédito tributário – até o deslinde da matéria no Supremo – para que decisão tenha efeito prático no juízo criminal. A contrário senso, se determinado tributo é discutido no STF quanto a sua constitucionalidade e ao mesmo tempo o contribuinte tem lavrado contra si um auto de infração, sendo denunciado por sonegação após o PAF, poderá o contribuinte encontrar-se em cumprimento de pena e logo em seguida, haver uma decisão do STF declarando a inconstitucionalidade do tributo.
Por essa razão, é importante a SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO com base no art. 151, V do CTN, assim como aplicação dos efeitos no processo criminal, fundado no art. 93, do CPP.
Avançando mais sobre o tema, STJ entende que há casos que poderá aplicar a suspensão do processo criminal independe da suspensão da exigibilidade do crédito tributário:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 1º, I, DA LEI N. 8.137/1990). GUERRA FISCAL. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. ALEGAÇÃO DA OCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO DO LAPSO PRESCRICIONAL, POIS NÃO HOUVE A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. SÚMULA VINCULANTE 24. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE DE SÓCIO. NECESSÁRIO REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADENA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. CREDITAMENTO DO ICMS, EM RAZÃO DA DIFERENÇA DE ALÍQUOTA ENTRE OS ESTADOS DA FEDERAÇÃO. OPERAÇÃO QUE, POR SI SÓ, É INCAPAZ DE CONFIGURAR CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA NO ÂMBITO DO STF (RE N. 628.075/RS). CONFIGURAÇÃO DE, NO MÁXIMO, DÉBITO TRIBUTÁRIO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECONHECIMENTO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Busca o recurso: (i) o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal em relação a um dos sócios; (ii) a exclusão do polo passivo da investigação referente a outro sócio; (iii) o trancamento do inquérito policial; ou, subsidiariamente, (iv) a suspensão das investigações policiais até o julgamento de mérito do RE n. 628.075. 2. Não há como analisar a prescrição alegada, em razão da ausência de informações de eventual constituição do crédito tributário e do teor do enunciado na Súmula Vinculante 24: não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo. 3. Em relação à ilegitimidade do sócio para figurar como investigado, a via eleita não permite o profundo revolvimento dos fatos e das provas da ação penal, sob pena de desvirtuamento de sua função constitucional. Ademais, a aferição da legitimidade ou não de se figurar o polo passivo da ação penal é resultado intrínseco da instrução criminal, que se vier a findar e desaguar na exordial acusatória, indicará fundamentadamente os responsáveis pelo delito imputado. 4. É assente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o trancamento de ação penal ou de inquérito policial, na via eleita, constitui medida excepcional, somente admitida quando restar demonstrado, sem a necessidade de exame do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade ou a ausência de indícios suficientes da autoria ou prova da materialidade. 5. No caso, consta dos autos que os recorrentes estão sendo investigados pela suposta prática do delito tipificado no art. 1º, I, da Lei n. 8.137/1993, quando teriam sido autuados em 30/11/2009, pela empresa Cambuci, em razão de supostos créditos indevidos de ICMS, nos meses de novembro e de dezembro de 2004, em decorrência da não apresentação das notas fiscais emitidas pelo estabelecimento filial situado em Brasília/DF e escrituradas no livro de registro de entradas. 6. Como é cediço, o crime previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/1990 exige o elemento subjetivo doloso para a sua configuração, consistente na efetiva vontade de fraudar o fisco, mediante omissão ou declaração falsa às autoridades fazendárias, com o fim de suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social. 7. A hipótese dos autos retrata a situação da chamada “guerra fiscal” entre os entes federados, em que a concessão de benefício fiscal por um ente federativo ocorre sem amparo em convênio entre os Estados e o Distrito Federal, no âmbito do CONFAZ. 8. Nesse contexto, o creditamento de ICMS realizado pelo contribuinte, com base em benefício fiscal previsto em lei vigente, utilizando-se de lançamentos exatos, afasta o dolo necessário para a configuração do ilícito previsto no art. 1º, inciso I, da Lei n. 8.137/1990, pois, nessa hipótese, não há falar em meio fraudulento para reduzir ou suprimir tributos. Precedentes. 9. Em casos tais, embora os fatos possam ensejar a condenação na esfera tributária e a imposição do pagamento de tributo, não se configura nenhum crime contra a ordem tributária, já que ausente o dolo do agente, que deixou de pagar o tributo com fundamento em benefício fiscal cuja legalidade deve ser resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, que, inclusive, já reconheceu a repercussão geral da matéria. 10. Assim, as operações supostamente realizadas não são capazes, por si sós, de configurar a prática de crime contra a ordem tributária, uma vez que, além de não se amoldarem à infração penal prevista no art. 1º, I, da Lei n. 8.137/1990, inexiste previsão legal de crime contra a ordem tributária que abranja a operação em questão, configurando, no máximo, a ocorrência de um débito tributário. 11. Recurso em habeas corpus provido para, reconhecendo a ausência de justa causa, trancar o andamento do Inquérito Policial n. 0044671-41.2012.8.26.0050. (STJ – RHC: 93168 SP 2017/0329814-9, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 05/03/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/03/2020).
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ARTS. 1º, II, E 2º, II, DA LEI N. 8.137/1990, C/C ART. 69 DO CÓDIGO PENAL. DENÚNCIA. INÉPCIA NÃO EVIDENCIADA. ALEGADA NULIDADE DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA. POSTERIOR ANÁLISE DAS QUESTÕES LEVANTADAS NA RESPOSTA À ACUSAÇÃO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. SUSPENSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. SITUAÇÃO NÃO COMPROVADA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. RECOLHIMENTO DE ICMS EM OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. GUERRA FISCAL ENTRE ESTADOS FEDERADOS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO PROVIDO EM PARTE. 1. Não é inepta a denúncia que, embora sucinta, contém a exposição do fato delituoso – recolhimento a menor de tributo devido a título de substituição tributária (ICMS-ST), em operações interestaduais de compra e venda de baterias automotivas -, com todas as suas circunstâncias – datas das infrações e montante do prejuízo ao fisco -, a qualificação do acusado, a classificação do crime – arts. 1º, II, e 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, por duas vezes, na forma do art. 69 do Código Penal – e a indicação de testemunha. 2. É indispensável, ao recebimento da denúncia, a fundamentação, ainda que concisa, especialmente no tocante à regularidade da inicial e à presença dos pressupostos processuais e das condições da ação, sob pena de ofensa ao art. 93, IX, da Constituição Federal. 3. No caso dos autos, o magistrado tão somente lançou “recebo a denúncia”, sem mais considerações, contudo, analisou as teses apresentadas na resposta à acusação, consistentes na “preliminar de garantia de que (…) a defesa se manifeste por último”, na “inépcia da denúncia” e na “ausência de justa causa” para a propositura da demanda, não havendo qualquer nulidade nesse sentido, porquanto ausente prejuízo à defesa. 4. O trancamento de ação penal só é possível quando estiverem comprovadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de justa causa. 5. Não obstante a juntada de guia de depósito em judicial, o valor nela constante é inferior ao do débito de ICMS referido na denúncia. Ademais, não há prova de que o depósito tem relação com os fatos que deram origem à ação penal. Tais aspectos geram dúvidas acerca da quitação de todos os encargos inerentes à indigitada supressão do recolhimento do tributo, sendo certo que a solução da controvérsia implicaria dilação probatória, o que é vedado em sede mandamental. 6. Relevante, para a defesa, é que o recorrente é sócio-administrador de empresa sediada em Montes Claros/MG, que comercializa acumuladores elétricos de empresa pernambucana, beneficiária de incentivo fiscal previsto na Lei estadual n. 11.675/1999. 7. O incentivo consiste em direito a crédito presumido do ICMS, limitado ao valor do frete, nas saídas para Unidade da Federação localizada fora da Região Nordeste, a ser utilizado na apuração do ICMS normal. 8. Esta Corte Superior já decidiu que “a guerra fiscal entre os Estados não pode dar causa a persecução penal sem justa causa” (HC 4.307/SP, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 14/4/1997, DJ 26/5/1997, p. 22.567). 9. Na mesma linha de raciocínio, em caso idêntico ao destes autos, esta Quinta Turma entendeu que “não se pode imputar a prática de crime tributário ao contribuinte que recolhe o tributo em obediência ao princípio constitucional da não-cumulatividade, bem como mantém a fidelidade escritural dentro das normas (em princípio) válidas no âmbito dos respectivos entes da Federação” (EDcl no HC 196.262/MG, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 19/12/2014). 10. Recurso ordinário em habeas corpus a que se dá provimento, em parte, para trancar a ação penal, em razão da atipicidade da conduta. (RHC n. 66.716/MG, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 30/3/2016 – grifo nosso).
Nos casos que há repercussão geral sobre o tema, a jurisprudência é inclinada a suspender o feito penal, conforme trecho extraído da decisão citada:
“Em casos tais, embora os fatos possam ensejar a condenação na esfera tributária e a imposição do pagamento de tributo, não se configura nenhum crime contra a ordem tributária, já que ausente o dolo do agente, que deixou de pagar o tributo com fundamento em benefício fiscal cuja legalidade deve ser resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, que, inclusive, já reconheceu a repercussão geral da matéria.” (STJ – RHC: 93168 SP 2017/0329814-9, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 05/03/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/03/2020)
Nessas linhas traçadas e com base na jurisprudência, nos casos em que há repercussão geral pelo STF, é imperiosa a suspensão dos trâmites penais até o término do processo na esfera cível. Consequentemente, a medida em questão traz segurança jurídica, evitando decisões conflitantes nas esferas judiciais.